A Armadilha do Jogo Educativo

por Pedro Paiva

Illich define a escolarização como um processo não só institucional, mas também mental e cultural.

Organizei minhas ideias em duas partes. Primeiro: uma crítica da noção de videogame educativo, seguida de uma recomendação mínima: é preciso conhecer o videogame muito bem antes de conformá-lo a um uso pedagógico. Segundo: uma crítica da gameficação, que é o estágio aumentado do videogame educativo, que se espalha pelo tecido das nossas vidas.

Eu achei a escolha da palavra “armadilha” muito apropriada. Porque as armadilhas são invisíveis, camufladas, se confundem com a natureza e a gente descobre só tarde demais. Isso tem muito a ver com o que é a internet hoje. Já vamos chegar lá.


Quando a gente pensa em videogames e educação, a gente normalmente pensa primeiro em videogame educativo, ou seja: o videogame que é o veículo de um conteúdo importante, um conteúdo curricular. Quando a gente pensa em fazer videogames na escola, em propor que os alunos façam seus próprios jogos, isso normalmente significa que eles farão um videogame educativo. Mas isso é uma ideia estranha.


Um videogame educativo deve partir de uma compreensão profunda do assunto e deve ser desenvolvido por uma compreensão profunda do processo de trabalho que é fazer um jogo (e do processo de trabalho que é educar). A conformação do conteúdo ao jogo ou do jogo ao conteúdo pode criar uma compreensão muito falsa, muito feita pra encaixar. Induz ao erro. Melhor que o videogame esteja livre da conformação pedagógica – especialmente quando estamos aprendendo ele.


O processo de trabalho de fazer um jogo já é um assunto, já atravessa uma série de disciplinas, já exige determinados conhecimentos e habilidades que são formadoras. Quando pensamos que o videogame só passa a ser válido na escola se tem no fim a confirmação do currículo – estamos reduzindo o videogame a uma técnica seca, um instrumento neutro esvaziado da própria complexidade. A compreensão do videogame como uma coisa instrumental, que serve pra produzir um acúmulo mas que por si só não é interessante, empobrece o videogame culturalmente. Ele perde – se não completamente, significativamente – sua potência ativadora de memória e sensibilidade, que são chaves da aprendizagem.


Isso não significa dizer que um jogo que seja categorizado como educativo não possa, por acidente, ser um bom jogo ou até um excelente jogo. Mas essa qualidade excepcional se deve muito mais à complexidade que ele mantém da tradição do videogame, de todas as estratégias estéticas, narrativas, compositivas que o videogame conquistou em anos de contribuição humana – do que àquilo que ele perde dela pra se conformar a uma função educativa.


Acredito que a maneira mais apropriada de levar o videogame pra escola, ou pra qualquer contexto pedagógico, seja através de educadores que sabem fazer videogame, ensinando o seu fazer como algo rico em conceitos, rico em tradição, rico no seu entrelaçamento com outras coisas (quem não chegou nessa parte do entrelaçamento com outras coisas, ainda não aprendeu o videogame. O videogame não flutua fora do mundo). Se dedicar ao que o processo oferece é mais potencialmente educativo do que conformar o processo a um plano curricular que precisa vencer uma série de temas importantes. O processo vai nos revelar maravilhas se a gente estiver atento a ele, mas o videogame não é milagroso. Se entusiasma demais com ele quem não o conhece com a profundidade que é necessária para ensiná-lo.


É claro que todo processo de trabalho resulta em alguma coisa, tem um fim. Mas o resultado do processo de aprendizagem, que é transformar experiência em conhecimento, tende a não ser obtido quando a experiência é exageradamente mediada.


E eu não estou dizendo que o processo de trabalho ou de estudo deva ser prazeroso e leve, de forma que a gente não o perceba – uma parte do trabalho é necessariamente desagradável. Se a gente transforma trabalho em lazer – em peça de entretenimento – a gente borra as diferenças entre os tempos de trabalho, de estudo e de descanso e divertimento. No capitalismo, borrar essas diferenças significa que estamos sempre produtivos, engajados na busca dos fins e passando batido por processos que, dessensibilizados, não percebemos que são massacrantes.
A ideia de um videogame educativo – ou seu derivado mais cruel: a gameficação – serve a esse borrão, elimina a fricção do processo de aprendizagem. Mas essa parte desagradável do processo é importante pra aprendizagem. Sensível e agradável são coisas diferentes. A função crítica da escola é oferecer um ponto de resistência aos desenvolvimentos do capitalismo, e não fazer da escola uma delícia. A aprendizagem ocorre por uma sucessão de crises. O educando se depara com sua própria insuficiência diante da tarefa difícil ou da conversa incompreensível (Paulo Freire vai chamar esse momento de “perceber-se inacabado”). É com a gana de superar essa insuficiência que a gente consegue dar saltos de complexidade na nossa compreensão do mundo. Mas é preciso entender que esse mundo é real, senão a gana não aparece.


Eliminar a fricção é no que consistem todos os esforços das empresas de tecnologia que dominam o mercado e a mídia hoje. Eliminar a fricção é eliminar a gana. Num eterno e agradável deslizar a gente forma pessoas que não são direito nem leitoras, nem produtoras, nem consumidoras, nem trabalhadoras, nem jogadoras… são como argilas humanas, moldáveis. Se encontram tragadas pelo feed numa mistura de sentimentos e posicionamentos mal elaborados, muito distantes de ritmos mais lentos e lugares mais silenciosos que permitem a elaboração racional da experiência. Ou seja, que permitam que a gente aprenda.


A internet proprietária, essa das redes sociais, é uma internet gameficada. Traduz os processos e interações em quantidades: de likes, de compartilhamentos, de visualizações… Essa internet provoca na gente uma sensação de agência que é típica do videogame e que, conforme o videogame, é limitada de modo invisível pelos caminhos do design. O jogador não é um autor, sequer co-autor, ele não tem o poder de mudar o sistema do jogo, que já chega pronto. O que pode ocorrer é, no máximo, que a performance do jogador ou o registro dessa performance seja transformada noutro conteúdo, noutra peça de mídia que já deixou de ser jogo num processo de pós-produção. Esse ilusionismo dos caminhos que beneficia a ficção no videogame, transborda pras nossas vidas através das redes sociais. Não sabemos o que é o poder da iniciativa e o que é o algoritmo funcionando. No videogame somos o boneco, na internet proprietária somos o perfil. Controlamos alguns movimentos dentro dos contornos do caminho mas não desenhamos o caminho. Transformados em bonecos, todas as atividades que podemos realizar online convergem numa entrega ao feed, esse mecanismo publicitário muito comilão, que é como uma esteira – e que se assemelha ao scrolling dos jogos. O feed marginaliza as atividades que não redundam a publicidade, de modo que a busca mais desesperada do ser humano hiperconectado é pela redundância que garante a relevância do perfil, pela acumulação sempre crescente de seguidores etc. Mesmo quando a vontade que motiva a nossa presença no feed tem muito mais a ver com a sua superação do que com a sua confirmação, é a esse funcionamento que a gente se conforma quando participa. Essa vontade de superação do feed deve encontrar outras formas de habitar o mundo, ou seja, outros processos, que tenham mais a ver com as nossas cidades do que com os nossos celulares. Que tenham mais a ver com o que queremos viver do que a que fins queremos ajustar as nossas vidas.
____

Este texto foi lido na minha fala durante o evento Todos X Fakes no Instituto Goethe de São Paulo, um ciclo de palestras e hackaton sobre desinformação, cultura digital e democracia.

Fonte: blog Menos Playstation